A trajetória da cannabis no Brasil remonta aos primórdios da colonização e culmina na recente decisão de descriminalização pelo STF (Supremo Tribunal Federal). No entanto, sua clandestinidade começou a se consolidar apenas no século 19, gerando controvérsias até os dias atuais: a pesquisa sobre sua classificação como droga tornou-se um tema de destaque no Google Trends.
A evolução da criminalização da cannabis no Brasil
A cannabis desembarca logo após a chegada dos colonizadores ao Brasil. Segundo documentos históricos, a planta teria sido introduzida no país já em 1549, trazida por escravos africanos, conforme mencionado por Pedro Corrêa. As sementes de cânhamo eram transportadas em bonecas de pano amarradas nas tangas, conforme registros da época. Cânhamo, um dos termos para cannabis, e maconha são anagramas sugestivos de uma complexa trajetória linguística.
Durante muito tempo, a cannabis desfrutou de liberdade e seu cultivo era até incentivado. No livro “A história da cannabis no Brasil”, o renomado médico e ex-professor universitário Eliseu Carlini revela que a Coroa Portuguesa, no final do século 18, considerava o cultivo na colônia como de interesse metropolitano.
Entretanto, o panorama começou a mudar na primeira metade do século 19, quando surgiram preocupações com seus supostos efeitos hedonistas. Foi nessa época que surgiu a primeira lei de criminalização da cannabis, não apenas no Brasil, mas em nível mundial. Em 1830, a Câmara Municipal do Rio de Janeiro promulgou a Lei de Posturas, que penalizava escravizados e outras pessoas pelo consumo do “pito do pango” com detenção de três dias ou chibatadas.
Apesar da proibição crescente, o uso medicinal da cannabis perdurou até o século 20. As cigarrilhas Grimault, comercializadas no Brasil e prescritas para bronquite e asma até pelo menos 1905, prometiam “expectoração abundante”. O produto, conhecido como “Cigarro Índio”, ilustra a ambiguidade histórica em relação à cannabis.
A aversão à planta intensificou-se nos anos 1920. Carlini sugere que essa mudança reflete a influência do delegado brasileiro na 2ª Conferência Internacional do Ópio, realizada em 1924 em Genebra sob os auspícios da antiga Liga das Nações. Na ocasião, Pedro José de Oliveira Pernambuco Filho descreveu a cannabis como mais perigosa que o ópio, consolidando um movimento global de repressão.
A onda repressiva se espalhou por diversos estados brasileiros na década de 1930. Rio de Janeiro, Piauí, Maranhão, Pernambuco e Alagoas foram alguns dos estados que promulgaram leis locais para coibir o consumo da planta. Em 1933, registrou-se a primeira prisão por comércio de cannabis no Rio de Janeiro.
A proibição nacional completa chegou em 1938, com o Decreto-Lei nº 891, que estabeleceu a Lei de Fiscalização de Entorpecentes, proibindo o plantio, cultivo, colheita e exploração de diversas substâncias, incluindo a cannabis.
Em 1976, a Lei nº 6.368 ampliou as penalidades para os usuários de cannabis. Além do comércio, a legislação previa reclusão de três a 15 anos para quem possuísse, transportasse, guardasse, prescrevesse, administrasse ou entregasse cannabis para consumo.
Essa legislação só seria revogada em 2006 com a introdução da Lei de Drogas, que eliminou a prisão para usuários de drogas, penalizando apenas os traficantes. No entanto, a lei não estabeleceu uma quantidade mínima que diferenciasse posse de tráfico.
Para o advogado Joel Luiz Costa, a Lei de Drogas perpetua o encarceramento de pessoas negras. “A pobreza no Brasil tem cor, e a Lei de Drogas é uma manifestação disso. Nas periferias, não há margem para dúvidas”, critica o ativista.
Costa argumenta que a aplicação subjetiva da lei reforça o preconceito racial e de classe. “Um jovem negro desempregado em uma comunidade carente, à noite, em um território supostamente controlado por determinada facção, será automaticamente rotulado como traficante, independentemente da quantidade de drogas que possua”, explica.
Em 2023, o Senado apresentou a PEC 45, conhecida como “PEC das Drogas”. Prevista para ser votada em 2024, a proposta inclui um parágrafo ao artigo 5º da Constituição, criminalizando o porte e a posse de drogas, seja para consumo pessoal ou tráfico. O artigo 5º é um dos pilares da Carta Magna brasileira, abordando direitos e garantias fundamentais dos cidadãos.
Descriminalização pelo STF
Na terça-feira (25), os ministros do STF votaram pela descriminalização do porte de cannabis para uso pessoal. Com um placar de 8 votos a 3, os magistrados finalizaram um processo que se estendia há nove anos.
Na prática, o que muda? Os ministros decidiram que o usuário flagrado com até 40g de cannabis para consumo próprio não comete crime, mas está sujeito a sanções administrativas, preenchendo lacunas da Lei de Drogas. Além disso, fica permitido o cultivo de até seis plantas fêmeas em ambiente residencial para consumo pessoal.
Ao proferir a decisão majoritária, o presidente do STF, Luis Roberto Barroso, enfatizou que o uso de cannabis em locais públicos permanece proibido e que o tribunal não endossa o consumo de drogas. Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes apoiaram o entendimento, destacando a necessidade de políticas públicas educativas para combater o consumo de drogas.